DIÁRIO DO EXÍLIO- 09: COMO SE FABRICA UM CIBORGUE EVANGÉLICO.


1-Conforme a ciência biológica entende e afirma: fui expelido, excluído, posto para fora, cuspido, retirado, devolvido de um nada, jogado para fora de um útero materno, segundo diz um registro feito, pela tardinha, numa mesa de maternidade do bairro da Várzea no Grande Recife, capital de Pernambuco. Isso já faz 43 anos que “aconteceu” ou será melhor dizer: “acontecendo”? Depois do que poderíamos chamar de construção do meu hardware básico, do conjunto de componentes necessários para meu funcionamento, teve início minha formatação pela e na sociedade. O software começou a ser instalado, como complemento e companheiro do hardware até então gestado no casulo interno-materno: Saí de um útero para outro bem maior, nada afável, tolerante, educador, doce, bonito, respeitador, otimista, esperançoso, confiante e incentivador. D’um nada caótico fui posto [ou como se diz no lugar de onde falo agora: ”ponhado”] num quase “todo” estabelecido: num conhecido- estranho, num aceitável-puro absurdo, num fuso-confuso, num doce-amargo, num fácil-difícil, num mole-duro, num rápido-lento, num passado-presente imediato, enfim, numa sempre, interativa e contraditória formatação.

2- O software é constituído por entidades "espirituais" - símbolos que formam os programas e são gravados nos disquetes.[Rubem Alves] Essas entidades eram inicialmente de origem cristã, produzida pelo “Magistério”Católico-Romano. Isto é, foram importadas diretamente do Vaticano. Mesmo me dando ao luxo de aparecer num mundo pós- Concílio Vaticano II (CVII) ou XXI Concílio Ecumênico da Igreja Católica, convocado no dia 25 de Dezembro de 1961, através da bula papal "Humanae salutis", pelo raro e saudoso Papa João XXIII, meu software eram ainda predominantemente uma síntese curiosa do católico brasileiro colonial, pré-Repúblicano com o catolicismo saído do concílio vaticano primeiro: aquele que proclamou como dogma a tal da infalibilidade papal e se contrapôs ao racionalismo, materialismo e ateísmo. Por tabela: inquisidor: anti-protestante, anti-bode, anti-crente e ati-evangélico. Adestraram-me primeiro acerca do conceito de pecado. Fruto proibido, em forma de leite materno, que me fizeram mamar. Foi quando perdi a inocência. Depois me fizeram acreditar no inferno e temê-lo muito, para assim facilmente, me tornarem um Cristão devoto. Minha mãe fazia-me decorar a reza do "pai nosso" e da "ave maria". Enfim, o software inicialmente instalado era ortodoxo, dogmático, sinteticamente e atualmente dizendo: conservador segundo o glosário teológico muito usado por gente famosa do cristianismo nacional como o Bispo Dom Robson Cavalcanti e do “combativo” Reverendo Presbiteriano “Reformado” e “Chanceler” da Mackenzie, Augustus Nicodemus Lopes.

3- Então, já comecei mais ou menos bem do ponto de vista desses dois senhores acima mencionados. Mas, não tão bem que bem. Havia alguma coisa de errado neste meu software. Como ele é constituído por uma série de programas que ficam gravados na memória, tal qual acontecem com os computadores, “o que fica na memória são símbolos, entidades levíssimas, dir-se-ia mesmo espirituais, sendo que o programa mais importante é a linguagem” [Alves]: esta tinha algo de errado. Eram Católica, Apostólica e Romana apenas. Precisava acontecer algo para que esta linguagem fosse substituída por outra. Conservadoramente falando: Deus, na sua infinita bondade se encarregou disso... usou minha mãe de novo! Como para ela rezar não era o bastante: obrigava-me a acompanhá-la nas longas e penosas procissões típicas do cristianismo católico. A pior de todas era subir o equivalente ao Monte Everest do Recife: o íngreme morro da Conceição. Putz! Como era alto... Mas, entre todas que ela me obrigava a ir, a que me marcou mais foi o cortejo da Cidade de Olinda, também no grande Recife. Lembro-me dele porque foi nele onde meu software começou a passar por uma espécie de recall Gospel onde a metanóia, digo: a “μετάνοια” evangélica ou: a metamorfose lingüístico-religiosa teve início. Comecei a me tornar um Protestante!

4- O cortejo ou a procissão que saía do Bairro Jatobá até o Bairro de Peixinhos em Olinda, tradicionalmente no dia 30 de Janeiro de todos os anos [1] era dedicado a São Sebastião. Imagina só! Um Santo proclamado pelo grupo Gay da Bahia no ano 2000 como: “Patrono dos gays do Brasil” [2] É claro que naquela ocasião esse santo como está sendo visto agora ainda não havia “saído do armário”! Será que sem eu saber, meu primeiro ato de protesto religioso foi homofóbico? Se foi ou não, isso fica a critério do leitor deste texto. De tão cansado de andar atrás dessa imagem de barro, sem entender o que era forçado a fazer e de achar tudo isso chato: xinguei, xinguei a “mona”! Perdão: o santo! No mesmo instante minha mãe me fez ajoelhar e pedir perdão a Deus pela ofensa cometida. Não pude como Lutero no passado recusar alegando não querer contrariar minha consciência. Tive que pedir perdão senão apanharia quando chegasse em casa. É claro que fiz isso de boca para fora.

5- Um protesto de uma criança cansada de seguir um cortejo religioso cristão católico é um marco estabelecido por mim, não um marco “natural” da história da minha vida. O gesto pode ser visto como um primeiro sinal de mudança da minha linguagem religiosa. Um xingamento simbolizou o desenvolvimento do espírito protestante em mim. Mas, mesmo assim, continuava cristão. Não demorou muito: tornei-me um combatente cristão batista, evangélico fundamentalista. Muito bem treinado na Primeira Igreja Batista de Areias [Recife/PE ]pelo agora pastor Hércules de Almeida Seixas para devorar outros cristãos diferentes de mim. Narciso acha feio o que não é espelho, logo: quem cristão-batista como eu não fosse: convertê-lo era que nem buscar com avidez um doce! Na prática, comparativamente: eu me tornei um Robson Cavalcanti, um Júlio Severo e, pior, um Augustus Nicodemus em miniatura! Um Frankenstein do conservadorismo evangélico mirim.

6- Personalidades como o Reverendo João Campos, Cáio Fábio, Francis Schaeffer, Jaime Kemp, o cara do livro intitulado: “turbulentos anos da adolescência” eram meus ídolos! Anos neuróticos! Lembro-me muito bem que minhas angústias teológicas chegaram a tal ponto que cheguei a procurar o saudoso João Campos aperreado para saber se dançar e tomar uma cervejinha era pecado? Ainda bem que ele não se encontrava naquele escritoriozinho atrás da livraria evangélica [Luz e Vida] da Praça Joaquim Nabuco: tive que buscar as respostas por mim mesmo. Quantas vezes enchi o saco do meu amigo Geremias [vulgo Gereh], da mesma Igreja que eu na época, tentando reconvertê-lo! Coisa de fundamentalistazinho besta! Acreditava piamente que não só tinha a verdade verdadeira dentro do meu coração, como carregava debaixo do sovaco, dominicalmente para a Igreja.

7- Mas, o tempo passa. Aprendi a gosta de ler e a ler além do índex evangélico permitia. Há quem diga o contrário: que aprendi a tresler ou “ler errado” como se houvesse uma “leitura certa” que não fosse as que são ensinadas nas escolas bíblicas dominicais da vida. Meu software começou a dar problemas. Segundo Alves: “Um computador pode enlouquecer por defeitos no hardware ou por defeitos no software. Nós também... Quando o problema está no software, entretanto, poções e bisturis não funcionam. Não se conserta um programa com chave de fenda. Porque o software é feito de símbolos, somente símbolos podem entrar dentro dele.” Sendo assim, as leituras que foram sendo feitas, aos poucos, foram enriquecendo e aprimorando meu programa espiritual. Nada melhor que leituras de textos como do Leonardo Boff, do citado Rubem Alves, textos poéticos, literatura, músicas etc...

8- Continuo lendo além dos cânones me incutiram na cabeça durante a juventude. Dizem-me que me desviei e perdi a salvação, que nunca foi um eleito de Deus e que pior que tudo isso junto, segundo Augustus Nicodemus e o seu comparsa teológico: Robinson Cavalcanti: tornei um liberal! Considerado nesses tempos pós-modernos: um pecado mortal. Porque, segundo eles, é como se pecássemos contra o Espírito santo em pessoa, logo, portanto, não tem outro jeito senão, o inferno total! Estou lascado! Estou liquidado segundo os nobres reverendos, heróis da ortodoxia pós-moderna, os OldCons gospel brasileiros.

9- Fiquei mais velho! Graduei-me em História! Lecionei-a em escolas públicas até 20 de outubro de 2009, quando fui adoecido justamente por uma evangélica, salvas em Jesus Cristo, dizimista fiel, faladora de línguas estranhas especialmente quando se zanga com um colega professor. Que, graças ao Deus dela: dirigirá a escola que toma conta na capital de Rondônia até o final de 2010: conservadora não só na fé que diz praticar, mas na história que diz ter aprendido e que ensinou. Bate no peito estufado dizendo bem alto e com força: “Eu sou tradicional!” A história que transmito é a ortodoxa, oficial, aquela mesma que também transmitiram a ela, talvez a mais de quarenta anos atrás.

10- Agora, encontro-me readaptado até poder superar a “graça” que tão boa e generosa irmã na fé e colega de ofício me proporcionou enquanto trabalhei sob sua direção: um vírus! Este se chama Estresse! Fruto de constantes assédios morais sofrido até em nome de Cristo dentro da escola. Coisa que tem debilitado o meu hardware, como o meu software também. Mas, não o suficiente para me detoná-lo por completo. Sofrimento que de alguma forma, branda ou leve é causado pelo o jeito diferente que penso em relação ao que me é imposto como “natural”, ou “institucional” na marra. Querem que eu seja um CIBORGUE evangélico e um ciborgue também como professor, como pensador e eu, simplesmente, não aceito! Não pela pessoa em si que me tornei. Não é por mim, mas pelo o que está em mim, na minha cabeça, na minha chamada alma, na minha mente, em fim pelo software que desenvolvi. Minha figura pouco importa, não sou ninguém e nem alguém tão relevante na sociedade: um simples desprofessor anônimo. Não me tornei um liberal, me tornaram um. Não sou um arruaceiro: mas me tornam um quando meus inimigos falam de mim. Demonização pura de quem eu sou, pela teologia, história, sociologia ou filosofia que consumo e produzo. Pela pedagogia que defendo na prática cotidiana escolar. Ao fazerem isso, ao satanizar o diferente, ao persegui-lo no ambiente de trabalho ou na Igreja que participa, ao hostilizá-lo continuamente pode, se tiver sorte, torná-lo um ciborgue. Assim é que se fabrica um, mas nem todos aceitam tal imposição. Protestam!

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