As igrejas na ditadura: uma reflexão

Magali do Nascimento Cunha (magali.ncunha@gmail.com)


O tema "O papel das igrejas na ditadura" traz com ele três palavras: memória, verdade, justiça. As três estão conectadas. Estamos falando de um passado, mas de um passado mal resolvido, que deixou marcas, feridas que ainda não foram cicatrizadas. São feridas abertas porque o passado não foi construído com verdade e com justiça. Sou de uma geração em que a palavra "ditadura" não era utilizada para falar desse tempo vivido - utilizava-se a palavra "revolução". Era uma forma de silenciar a memória. E, neste caso, mentir (revoluções são de outra natureza...). Como as feridas abertas nesse passado feito de injustiça, repressão, exclusão e crueldade com as prisões arbitrárias, a tortura e a morte poderiam ser curadas com falseamento da verdade e com o apagamento da memória?

Por isso é preciso reafirmar que memória se constrói afinal, o passado ainda está em nós. E ele está sendo reconstruído por um Brasil que quer curar as feridas, cicatrizar as fendas abertas nos corpos e na alma. Para isso é preciso buscar a verdade e fazer a justiça fluir como um rio. 

A ditadura não acabou. Não. Ela foi silenciada e está introjetada: ela ainda existe nas instituições e suas práticas. Por isso o autoritarismo ainda é realidade. Por isso ainda há tortura nas prisões. Por isso ainda precisamos perguntar "Onde está o Amarildo?"

Nesse sentido, a memória coletiva nunca deve ser vista apenas como revisão ou recuperação do passado. A memória precisa ser vista como utopia. É o olhar para o passado como algo que alimenta o presente e o futuro. Aqui a memória edifica as pontes que ligam o presente ao passado, sendo o presente não uma oposição ao passado, porque uma vez que o passado não mais existe, a lembrança é "uma reconstrução do passado com a ajuda de dados emprestados do presente" (Maurice Halbwachs)[1]

Evoco aqui outras afirmações que respaldam este pensamento: 

A memória traz em si a possibilidade de vermos o presente, não como uma realidade fixa e imutável, como algo eterno, mas como um produto humano, como um momento de passagem, uma ponte através da qual o passado constrói o futuro. E é para o futuro que se volta, assim, essa memória ativa, afirmando o poder e a força da ação humana sobre sua própria história, desnaturalizando o tempo humano. (Norberto Luiz Guarinello)[2]
 A memória tem uma função subversiva. (...) Talvez que a memória das esperanças já mortas seja capaz de trazê-las de novo à vida, de forma que o passado se transforme em profecia e a visão do paraíso perdido dê à luz a expectativa de uma utopia a ser conquistada. (Rubem Alves)[3]
Não existimos para dizer o que é, mas para fazer o que não é. (Cornelius Castoriadis)[4]

No contexto do período de implantação da ditadura militar, 1964, as igrejas evangélicas guardavam suas marcas identitárias: eram fortemente marcadas pela ética pietista, predominantemente individualista, e a pregação da separação igreja-mundo e da não-preocupação com as questões terrenas, que restringiam a compreensão de missão no Brasil ao anticatolicismo e à pregação espiritualizada da fé cristã, com fins conversionistas de adesão de novos fiéis. No entanto, havia brechas: a abertura de pessoas e grupos do Brasil para o contato com as expressões de unidade e cooperação internacionais (movimento ecumênico), que despertou para uma nova dimensão, a responsabilidade sociopolítica dos cristãos, que estimulou uma atuação das igrejas para além das fronteiras denominacionais. A fundação do Conselho Mundial de Igrejas (1948) deu nova forma a esta significação, com a articulação de diferentes movimentos e motivações para a ação cristã. O Setor de Responsabilidade Social e o Departamento de Ação Social da Confederação Evangélica do Brasil foram os destaques deste momento.

Uma outra dimensão que contribuiu com este processo foi o novo pensamento teológico, que irrompeu na Europa no início do século XX. Este vinha sendo obstruído no Brasil pela compreensão fundamentalista da educação teológica (anti-intelectualista e contrária a reflexões que fossem além de uma leitura literalista da Bíblia), mas encontrou brechas nos anos de 1950 para ser disseminado nos seminários evangélicos. Esta nova forma de fazer teologia procurava contextualizar o estudo da Bíblia e os ideais da Reforma Protestante, isto é, lembrá-los, interpretá-los e re-significá-los à luz dos desafios do tempo presente. O Seminário Presbiteriano de Campinas, reconhecido, à época, como uma das melhores escolas de teologia do Protestantismo latino-americano, destacou-se no processo, tendo à frente nomes como o de Richard Shaull.

Os movimentos de juventude evangélica (estudantil e no interior das igrejas) acompanharam o aprofundamento da inserção dessas novas dimensões e conseguiram representar uma espécie de síntese do novo pensamento teológico e dos ideais de unidade e responsabilidade sociopolítica dos cristãos. Estes movimentos formaram lideranças expressivas para as igrejas evangélicas e para o movimento ecumênico nacional e internacional e realizaram atividades que transformaram a atuação das igrejas, como encontros de estudo e os acampamentos de trabalho em áreas empobrecidas do País. O destaque na ação da juventude foi a União Cristã Estudantil do Brasil (UCEB) e o Departamento de Juventude da Confederação Evangélica do Brasil, que ganharam expressão internacional.

Os atores desse processo de renovação eram clérigos e leigos, alguns das cúpulas, muitos das bases eclesiais, jovens e adultos, que possibilitaram a formação de movimentos que passaram a desafiar as igrejas, com mudanças. O ápice deste processo se manifestou nos anos de 1950 e 1960 mas ele foi interrompido com uma reação conservadora das hierarquias eclesiásticas, reforçadas pelo golpe militar de 1964, que desencadeou um processo repressivo na vida do País. A reação dos dirigentes pode ser compreendida como o resultado de um histórico fechamento ao novo, com o qual as igrejas de toda forma deveriam, cedo ou tarde, se defrontar. Os grupos conservadores, justificando o "medo do comunismo", recusavam-se a aceitar a pluralidade e a diversidade de pensamentos e práticas, trabalhando para que prevalecesse apenas a sua concepção de igreja e de fé. Este “medo do novo” era expresso não somente em relação aos grupos ecumênicos, mas também a outras manifestações e práticas diferenciadas do modo de ser consolidado, como, por exemplo, a ação pentecostal e dos movimentos de renovação carismática.

Também é importante reconhecer que as pessoas que ocupam espaços de poder nas igrejas sempre tiveram dificuldade de lidar com as perspectivas diferentes na dinâmica da prática eclesial seja no campo teológico ou no campo pastoral que levem as igrejas para além do mesmo, que criem pensamento e postura críticos, e desenvolvam uma espiritualidade encarnada. Por isso a reação de lideranças e segmentos das igrejas ao processo de renovação, que trazia os temas da unidade/ecumenismo e da responsabilidade sociopolítica para a prática pastoral, já acontecia desde os anos 50 e foi reforçada com exclusões e expurgos facilitados pelo sistema estabelecido pela ditadura militar. Claro! Já escrevia o renomado psicanalista Carl Jung: "Pela lógica, o contrário do amor é o ódio; o contrário de Eros, Phobos (o medo). Mas, psicologicamente, é a vontade de poder. Onde impera o amor, não existe vontade de poder; e onde o poder tem precedência, aí falta o amor. Um é a sombra do outro".[5]

Ao mesmo tempo, houve resistência. Gente que sofreu na carne pelo Reino de Deus e sua justiça e viveu na clandestinidade, habitou os porões da ditadura.

Estamos aqui hoje para lembrar. Não com o espírito de rancor e vingança, porque ela pertence a Deus. Mas para lembrar, trazer a memória silenciada à vida, a fim de ressaltarmos a verdade, em busca da justiça. E acima de tudo, em busca da realização do amor. Essa é a vontade de Deus como diz o Evangelho de João, "conhecereis a verdade e a verdade vos libertará" (João 8.14) e o arcebispo de São Paulo D. Paulo Evaristo Arns, "Para que não se esqueça. Para que nunca mais aconteça".

Notas:
[1] Memória Coletiva. São Paulo: Vértice/Editora Revista dos Tribunais, 1990, p. 71 
[2] Memória coletiva e história científica. Revista Brasileira de História. São Paulo: Espaço Plural, v.14, n.28, 1994, p. 188-189
[3] Dogmatismo e Tolerância. São Paulo: Paulinas, 1982, p. 19.
[4] A instituição imaginária da sociedade. 3 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1995. p.197
[5] Psicologia do inconsciente. Petrópolis, Vozes, 1978, p. 49. 

Reflexão apresentada no Diálogo Comunitário da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista/Universidade Metodista de São Paulo "As Igrejas na Ditadura Militar", setembro de 2013

Leia mais sobre o tema "As igrejas na ditadura:
  • Os evangélicos e a ditadura militar. Reportagem de IstoÉ, de 10 de junho de 2011.
  • “Igrejas legitimaram golpe militar”, afirma pesquisador. Entrevista de Roldão Arruda com Anivaldo Padilha, de 28 de janeiro de 2013
  • Igrejas: resistência e colaboração durante a ditadura militar. Reportagem de O Globo, 18 de março de 2014.
  • CIA financiou Igreja em marchas pró-golpe militar, diz Frei Betto. Entrevista de Guilherme Balza, UOL, 20 de março de 2014.

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