Nós e a Torre de Babel

Em meio ao discurso único do vandalismo e da justiça com as próprias mãos, uma história luminosa e dissonante que traz esperança

Vivemos um tempo de estímulo ao pessimismo, em que a pauta dos noticiários e os discursos sociais e políticos chamam a um desânimo, a um “não tem mais jeito”. Atos de racismo, execuções sumárias, denúncias de corrupção de várias origens, práticas de vandalismo, justiça com as próprias mãos (estimuladas até mesmo nas mídias), intolerância. Daí, descrença nas instituições, rebaixamento da autoestima social, desqualificação das religiões (incluindo as igrejas, que colecionam desconfianças) e dos governantes.
Foi com esse sentimento que me deparei com a notícia veiculada no GLOBO de 11 de maio: “No Rio, estudante evita linchamento de ladrão”. Era um texto pequeno, alguns parágrafos de uma coluna de página. Mas ali havia uma luz, como uma revelação, uma mística. Mikhaila Copello, 22 anos, estudante de Arquitetura, fez de tudo e conseguiu impedir que um jovem que tinha roubado um celular fosse morto por um grupo irado na Freguesia, Zona Oeste da cidade. Ela gritou “vocês não são Deus, não podem julgar quem morre e vive” e ficou protegendo o rapaz até que a PM chegasse. A jovem ainda ouviu do policial, que recebeu aplausos: “se gosta de bandido, leva pra casa”. O preso teve chance de dizer obrigado a Mikhaila, que, depois, desatou a chorar. Não vou comentar a atitude do grupo irado e muito menos a do policial sem ética. Prefiro ressaltar a da estudante, uma luz de esperança. Não seria uma porção da possibilidade de humanizar um mundo desumano e promover a paz com justiça acima de tudo? Não seria o “tem jeito!”?
Tudo isso me lembra a conhecida história da Bíblia sobre a Torre de Babel, uma narrativa do início da vida humana em sociedade. Um grupo desejou se tornar célebre e poderoso e planejou a construção de uma cidade e de uma torre que chegaria aos céus. Tal grupo se colocaria na altura do Deus Criador e controlaria outros grupos humanos. Quem chama a atenção para essa leitura é o pastor evangélico luterano e renomado teólogo Milton Schwantes, falecido em 2012. Ele ensinou que o projeto divino, baseado em comunhão e harmonia em meio às diferenças, havia sido corrompido. Isso é claro quando a narrativa revela o contexto do plano do grupo: “em toda a terra havia apenas uma linguagem e uma maneira de falar”. Uma unidade imposta pelo projeto de dominação e concentração: uma única maneira de falar, a linguagem que torna possível o poder de uns sobre outros.
O texto narra que Deus, então, desceu para ver a cidade e a torre (afinal, Ele está muito acima desses projetos humanos) e disse: “Desçamos e confundamos ali a linguagem desta cidade, para que um não entenda a linguagem de outro”. Assim, “o Senhor dispersou o grupo pela superfície da terra e cessou de edificar a cidade, e foi dado a ela o nome Babel”. Nesse olhar da narrativa, Deus dispersou e confundiu a ideia de linguagem única, do controle e da dominação, garantindo a diversidade. É assim que se realiza o projeto do Criador para a humanidade, e não na língua única dos que se colocam na altura de Deus e contribuem para desumanizar o mundo.
Precisamos superar a linguagem única do pessimismo e da violência que imobiliza ou gera vândalos e serve para conservar a lógica vigente de injustiça e falta de paz. Precisamos da experiência de Babel que, nesse sentido, não significa confusão, mas uma ação divina e humana que garanta a diversidade e disperse o controle. Significa dar voz aos silenciados, potencializar as ações e as palavras que humanizam. Que os protagonistas dos discursos sociais e políticos, incluindo as religiões, as igrejas e as mídias, promovam uma nova forma de falar e ouvir. Quem sabe assim o testemunho de uma jovem humana possa aparecer numa primeira página ou numa tela para contagiar outros humanos?

Publicado em O Globo, 15 de maio de 2014. 

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